O
corpo da mulher e a violência do Estado!
Tirem
as garras de nossos corpos!
Recentemente
o tema do aborto tomou de assalto as ruas. Na Irlanda, no Chile, na
Argentina, no Brasil… As mulheres novamente vêem a esperança de
que o Estado e a Igreja deixem de intervir em seu poder reprodutivo.
A ruptura com a lógica estatal de domínio do corpo feminino,
fundada no patriarcado, não é tão simples de se estabelecer. O
sistema capitalista se apropriou do patriarcado, fazendo prevalecer
uma forma de exploração e maior extração de mais-valia da força
de trabalho feminina, logo não vai abrir mão desse valor a mais que
consegue extorquir. As mulheres, diante dessa ordem, ou se submetem
aos grilhões, ou tentam destruir a instituição por dentro. Daí
surgem as demandas contra assédio moral e sexual, igualdade
salarial, legalização do aborto, assistência médica, auxilio
creche, direito à reprodutividade, melhoria do sistema de saúde
etc., essas são algumas das pautas que não são apenas pela
emancipação da mulher, mas pela emancipação da classe
trabalhadora. Enquanto a questão da reprodutividade e violência de
gênero for encarada pela esquerda como uma pauta do movimento
feminista e não como uma demanda da classe trabalhadora, estará se
fazendo coro com a lógica exploratória proposta pela ordem
patriarcal - capitalista.
O
machismo nosso de cada dia
Segundo
dados da Organização Mundia da Saúde, só em 2016, 1.829 mulheres
morreram no Brasil por causas relacionadas ou agravadas por gravidez,
parto ou o puerpério (período pós-parto de 42 dias). Já uma
pesquisa recente realizada pela FGV aponta que pelo menos 50% das
mulheres gestantes são demitidas após licença maternidade. Em uma
investigação realizada pela Organização Internacional do Trabalho
(OIT), em todo o mundo, 52% das mulheres já sofreram assédio
sexual. Levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, divulgado em outubro de 2017, registra que, em média, 135
estupros ocorreram por dia, totalizando 49.497, um crescimento de
4,3% comparado a 2016. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA)
quase uma em cada 5 brasileiras, aos 40 anos, já realizou, ao menos,
um aborto. Estudo realizado pela Instituição norte-americana
Guttmacher Institute traz dados de que Caribe e América
Latina possuem os maiores números de abortos no mundo, dos 6,4
milhões de abortos, 76,4 % foram inseguros. Cansou? Imagina as
mulheres que vivenciam essa violência diariamente.
Seja
qual for o caminho que a mulher percorrer se deparará com obstáculos
impostos pelo capitalismo, que tem seus pés fincados no patriarcado
e no machismo. A lei trabalhista e a reforma previdenciária só vêm
para piorar o cenário, que já não está muito favorável aos
interesses das trabalhadoras e trabalhadores. A questão da
legalização do aborto aparece nesse contexto para tentar aliviar um
dos vários pesos que o Estado deposita sobre o corpo feminino.
A
ilegalidade do aborto se converte em mais uma forma de genocídio da
população pobre, uma vez que a maioria dos abortos clandestinos são
realizados por mulheres pretas e periféricas que não possuem R$
5.000,00 para pagar pelo procedimento seguro, como as mulheres
burguesas e algumas pertencentes à classe média. A maioria das que
recorrem ao procedimento também possuem alguma religião, as
Católicas pelo Direito de Decidir e a Frente Evangélica pela
Legalização do Aborto nos mostram que cada vez mais se trata de uma
questão de saúde pública e não de cunho religioso. A defesa do
direito reprodutivo caminha junto à Educação Sexual, ao direito
aos anticoncepcionais, assim como melhoria do Sistema de Saúde. Nos
países nos quais houve a legalização viu-se, além da queda do
número de realização de abortos, a melhoria do sistema público de
saúde.
Os
mesmos que são contrários à legalização, por vezes, se
posicionam em favor do patrão em seu “direito individual” em não
contratar mulheres, porque estas engravidam, mas se beneficiam em
muito de sua mão de obra “barateada”. São estes também aqueles
que, provavelmente, quantificam entre os 5,5 milhões dos “sem pai”
nas certidões de nascimento. Ou, ainda, aqueles que julgam,
assediam, violentam mulheres que são mães solteiras e, não sendo
mães, são, por vezes, obrigadas à continuidade de uma gestação
indesejada quando vítimas de estupros, ou presas na clandestinidade
quando jogadas a “própria sorte”.
Nuestramerica
sangra
A
legalização na Irlanda e as manifestações em vários lugares de
nuestraamerica reascendeu o debate a respeito da
legalização. O exemplo do Uruguai nos mostra uma queda
brusca na mortalidade de mulheres em decorrência de abortos. Os
estudos mostram que nos países onde a prática é legalizada houve
uma queda no número de abortos e no número de mortes maternas, com
o acompanhamento de políticas públicas, prevenção à gravidez
indesejada, assistência social e educação sexual.
Ainda
assim a realidade não é das mais favoráveis. No Chile vimos
ser aprovado aborto em caso de estupro ou risco de vida para a mãe
apenas em 2017. Esse ano, em manifestação pela legalização, três
companheiras chilenas foram esfaqueadas, ato brutal, não apenas
contra a liberdade de expressão, mas um ato escancarado de
feminicídio, legitimado por uma sociedade que ainda encarcera os
corpos femininos e não pensa duas vezes em fazê-los sangrar.
Hermanas estamos con ustedes! Ni una a menos!
Em
El Salvador a legislação é extremamente rígida, a prática
é criminalizada mesmo em casos de estupro, fetos deformados ou
quando a saúde da mãe está em risco. Há ainda prisões de
companheiras salvadorenhas que, mesmo diante de abortos espontâneos,
são encarceradas sob suspeita. Veja-se o caso de Teodora Vásquez,
que foi solta apenas em 2018, cumpriu 10 anos de cárcere, após ter
tido um parto prematuro e a criança ter nascido morta, mesmo sem
provas concretas foi sentenciada à 30 anos. Hoje ainda há cerca de
27 mulheres encarceradas devido a essa legislação retrógrada e
opressora.
Na
Argentina houve manifestações imensas de mulheres que se
puseram nas ruas e que, através dessa luta, fizeram o tema abrir
frestas nas paredes do parlamento. Isso mostra que a luta não é
construída a partir da instituição, que está dentro da estrutura
burguesa, porém, por vezes, os gritos das ruas conseguem alcançar,
ainda que parcialmente, as esferas parlamentares.
Do
dia 3 ao 6 de agosto ocorreu, em Brasília, uma audiência
pública para debater uma Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF), protocolada pelo PSOL no STF, que exigia a
retirada dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que criminalizam as
mulheres que realizam o aborto.
O
Brasil ainda é um país retrógrado com relação às leis
que dizem respeito à saúde da mulher. A descriminalização, ainda
que seja uma abertura do debate, não garante o atendimento às
mulheres no sistema de saúde público, nem que deixem de morrer
vítimas de aborto. Logo é de extrema importância levantar a
bandeira da legalização e, se há uma lição que a Argentina nos
deu, é de que não devemos nutrir esperanças com relação ao
judiciário, nem à Câmara ou ao Senado, a luta se constrói nas
ruas e é daqui, do chão, de onde essas bandeiras devem se erguer.
A
solidariedade à Argentina foi algo incrível, no Brasil,
em frente ao Consulado argentino, mulheres cantavam, levantavam suas
faixas, carregando fitas verdes e roxas. Desceram em marcha pela Rua
Augusta, lembraram o assassinato da vereadora Marielle, ainda impune,
o genocídio das mulheres negras, o direito das mulheres
homossexuais, bis e trans e os vários gritos contra a bancada
moralista que, se esquecendo que o Estado é laico, ainda buscam
encarcerar nossos ovários na moral-cristã-machista-patriarcal.
Nuestras
hermanas lutaram fortemente, com uma mobilização histórica em
torno de um tema que mata tantas e tantas mulheres diariamente. O
Senado deu a resposta esperada. Aqueles que se declararam pró-vida
se basearam em textos de cunho religioso em apoio à ala mais
conservadora da Igreja Católica. A Vice-Presidenta declarou
abertamente seu repudio à pauta defendendo inclusive retrocessos
legais (proibir o aborto em caso de estupro), Macri, por sua vez, se
silenciou. Mas a luta não acaba aqui, a história ainda tem muitas
linhas por escrever.
Apesar
das mobilizações em torno de várias questões que trazem à tona
temas que envolvem a saúde e segurança das mulheres, o Brasil ainda
tem muito enraizada uma moral cristã, escravagista e patriarcal.
Diante do parlamento vemos várias falas negando o direito ao aborto.
Aqueles que querem se fantasiar de progressistas falam em plebiscito,
se o mesmo acontecesse, hoje, ganharia o “não”. Assim como temos
uma maioria populacional que é contra o aborto há também uma
maioria que afirma que se uma mulher estiver com uma roupa curta ou
decotada merece ser estuprada. Temos um Estado que não permite um
aborto, por vezes, até em menores vítimas de abuso e, no entanto,
acolhe pedófilos e estupradores.
Alternativas?
Há
alguns passos que podem nos levar à construção de pautas que
fortaleçam as mulheres. Na Argentina se construía trabalhos de base
há quase 30 anos. Precisamos nos mover. Propor pautas que nos ajudem
a ir conquistando pouco a pouco elementos fundamentais. A Revolução
não se faz do dia para a noite, é preciso criar condições. Nos
locais de trabalho, debater continuamente a formação e as questões
que envolvem assédio moral e sexual. Combater esse Estado assassino
que deixa nossas mulheres morrerem em camas de hospitais, as mesmas
mulheres que morrem vítimas de abortos clandestinos. Aquelas que,
quando gestantes, acabam por sofrer violência obstétrica e carregam
consigo marcas e traumas pelo resto da vida. Combate à cultura do
estupro que permite que tantas mulheres e crianças sofram abusos,
muitas vezes, dentro de suas próprias casas. Gritar: Chega de
Homofobia! As pessoas devem ter o direito de amar, essa também é
uma pauta do feminismo. Nunca abandonar a bandeira pela legalização
do aborto, mas ir construindo a luta como “uma ave que pouco a
pouco vai conquistando seu voo”.